Neste ano serão comemorados mundialmente os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, e no Brasil os 30 anos da promulgação da chamada Constituição Cidadã, ocorrida em 5 de outubro de 1988.
A primeira efeméride fornece lustro à história da luta mundial pelo estabelecimento e aplicação dos direitos humanos na contemporaneidade. Embate que vem desde o imediato após Segunda Guerra - em reação à carnificina gerada pela tecnologia bélica empregada naquele conflito mundial e à revelação das atrocidades do Holocausto - chegando até os nossos dias, quando os direitos humanos e sua defesa tem sofrido sérios ataques. Direitos humanos da ordem social, política, econômica e cultural, além do direito ao desenvolvimento, têm sido postos à prova mais visível e firmemente a partir da crise econômica de 2008 e da recente onda migratória gerada por governos ditatoriais e guerras civis. Situação em grande medida potencializada em duas frentes. De um lado, a adoção de políticas governamentais favoráveis à flexibilização ou precarização do trabalho e submetidas à financeirização da economia, em conformidade com o ideário neoliberal. Em grande parte, facilitados pela globalização econômica e pelo exponencial avanço da tecnologia digital. De outro, a ascensão oportunista de partidos e governos de cunho xenófobo e chauvinista, atravessados por fundamentalismos religiosos e conservadorismo comportamental. Visões que deitam raízes em discursos e práticas da extrema-direita que, infelizmente, se impuseram em várias partes do mundo no período do entre-duas-guerras e foram fiadores do segundo conflito bélico mundial, bem como ultimamente empenham em suprimir os horrores do Holocausto da memória coletiva.
A segunda efeméride joga luzes tanto na elaboração de garantias à vida política democrática, com vistas ao expurgo do autoritarismo do anterior Regime Militar, quanto à abertura da sociedade brasileira à vida cidadã, penetrada pelos valores preconizados na Declaração dos Direitos Humanos. Objetivos cuja a luta para a sua realização registra, nas últimas três décadas, feitos e números positivos em termos de política democrática e de certo avanço da cidadania, mas, ainda, distante da plena consecução desses. De qualquer forma, quadro político-social que se distingue do perpetrado na Ditadura Militar, quando direitos humanos basilares foram desprezados e mesmo suprimidos - nesse caso, sobretudo nos chamados Anos de Chumbo, iniciados no final de 1968, com a decretação do AI-5. Embora fora justamente a defesa dos direitos humanos por parte de vários e diversos setores da sociedade civil o elemento que fortaleceu a luta contra a Ditadura Militar, inclusive, dotando tal embate de visibilidade e apoio internacionais. Contudo, nos últimos tempos, o avanço e, mesmo, a permanência da democracia e afirmações no campo da cidadania no Brasil se veem ameaçados por forças sociopolíticas contrárias à democracia com participação popular ampliada, ao reforço da justiça social por conta do Estado e ao vicejar dos direitos humanos em todos os campos e setores sociais da vida nacional, sobremodo em regiões e classes mais vulneráveis econômica e socialmente. Sem desconsiderar as tentativas de obstar medidas reparadoras contra as vítimas da repressão e tortura da Ditadura Militar quando o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade por parte de grupos políticos de extrema-direita e alguns setores reacionários das Forças Armadas.
Do ponto de vista histórico, a elaboração e vigência da Carta brasileira de 1988 se imbricaram com a trajetória da luta internacional em defesa e pela efetivação dos direitos humanos. Intersecção que, ao mesmo tempo, serviu de dínamo e esteira à retomada e avanços da democracia política no Brasil, gerando terreno fértil às proposituras e ações em prol da vida cidadã oriundas dos movimentos sociais – tanto os operados desde os tempos da Ditadura Militar quanto os mais recentemente organizados. Assim, a denúncia social e a da violação dos direitos humanos cresceram e apareceram mais fortemente no cenário político nas três últimas décadas. Frutificou em reparações de injustiças cometidas pelo Regime Militar e medidas coibidoras ou atenuadoras de algumas mazelas sociais geradas pela histórica desigualdade social e reiterada tentativas de avanço dos direitos humanos às classes mais populares, assim como a populações discriminadas por raça e gênero, além das que vivem no interior mais recôndito do Brasil, onde a proteção e serviços essenciais do Estado são muito parcialmente presentes.
Neste sentido, a comemoração das sete décadas de luta pelo vicejar mundial da Declaração dos Direitos Humanos e dos trinta anos pela consecução de preceitos da Constituição Cidadã merece e exige que, de maneira premente, pesquisadores sobre a democracia e os direitos humanos, assim como os ocupados com estudos sobre âmbitos sociais e culturais que enfrentam atualmente ameaças de retrocesso histórico, se reúnam para debater, refletir sobre a manutenção das conquistas obtidas à luz dos dois documentos, bem como sobre o avanço da aplicação de seus valores e preceitos. Trata-se, então, de comemoração reflexiva e ativa, na confluência entre o saber e o agir, como não deixaram de fazer agentes sociais que, individuais ou coletivos, pensaram e se empenharam para que os dois documentos viessem à lume e/ou lutassem para que os valores neles expressos pudessem ser aplicados. Forma de comemorar que, sem dúvida, se vê diante de grandes desafios no tempo imediato, os quais a universidade pública brasileira não pode se furtar em trata-los e refleti-los por meio de pesquisas e o debate acadêmico sobre eles.
No caso da proposta da XXXIV Semana de História trata-se de reunir especialistas cujas pesquisas e os desdobramentos delas abrem possibilidades para melhor conhecer e compreender aspectos e elementos das trajetórias da elaboração e aplicação da Declaração dos Direitos Humanos e da Constituição Cidadã, assim como fornecer subsídios à reflexão analítica sobre perspectivas de permanência e avanços da democracia calcada na promoção dos direitos humanos. Valor afirmado em ambos documentos e cujas dinâmicas sociopolíticas envolvidas na aplicação deles têm se empenhado para evitar retrocessos tanto no âmbito social e político quanto cultural e espiritual, buscando, assim, defender o respeito à dignidade humana e a paz entre os povos.
Para tanto, a coordenação da XXXIV Semana de História estabeleceu uma programação cujas atividades contemplam o direcionamento acima destacado. Nesta direção, a programação do evento será composta de palestras e mesas redondas a enfocar e debater temáticas específicas concatenadas ao tema central do evento, sempre integradas por professores/pesquisadores com ativo trabalho acadêmico acerca dos assuntos enfocadas em suas apresentações. Assim, a XXXIV Semana de História intenta discutir trajetórias e perspectivas dos direitos e da democracia no âmbito dos arquivos, da comunicação social, do patrimônio cultural, da educação e diversidade, da memória e interpretação histórica sobre a repressão e o Holocausto, bem como de ações de pesquisadores na defesa do direito à segurança pública e os dos trabalhadores sem-terra e dos sem-teto. |