Em A era dos extremos, Hobsbawm lembrou aos seus leitores que “Não há como apagar a era soviética da história da Rússia ou do mundo, como se não tivesse existido. Não há como São Petersburgo voltar a 1914”. Ressaltou ainda importância do surgimento da URSS e da institucionalização do comunismo como alternativa ao sistema capitalista, a ponto de enquadrar o “breve século XX” entre a Primeira Guerra Mundial e sua consequência direta, a Revolução de Outubro de 1917, a queda do Muro de Berlim (1989) e a desagregação do mundo soviético.
Filha da guerra que aprofundou as contradições da sociedade russa, a Revolução de 1917, em pouco tempo, deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e introduziu um “corpo estranho” no mundo capitalista, o comunismo, que, depois da Segunda Guerra Mundial, já governava parte significativa da população do globo. No chamado “Terceiro Mundo”, o sistema soviético apresentou-se como modelo de autonomia econômica para países que buscavam sua independência em relação às metrópoles. Até mesmo durante a Grande Depressão da década de 1930, o planejamento estatal da economia soviética foi acalentado como saída para a profunda crise que afligia os países capitalistas centrais.
De contemporâneos ao Outubro Vermelho, até os dias de hoje, passando por conservadores, liberais ou marxistas, estudos abordaram a insurreição em diversos aspectos: sua origem, a construção da URSS e do comunismo, o stalinismo, seu legado, a Guerra Fria, as causas internas e externas de sua desintegração. O aproximar-se do centenário da Revolução Russa traz consigo a expectativa de trabalhos inovadores que fomentem o debate. Será um revisionismo nos moldes do que ocorreu no bicentenário da Revolução Francesa? Uma análise menos passional da revolução? Uma nova perspectiva para a esquerda internacional? Enfim, o ano de 2017 talvez possa responder a essas e outras inquietações.
O legado da revolução pode ser mensurado com o acompanhamento dos debates ancorados na efeméride dos 50 anos e após o fim do comunismo soviético, no início da década de 1990, que impôs uma série de questionamentos em relação às teses da esquerda que se refletiram pelo mundo “dito globalizado”.
Em 1848, durante a “Primavera dos Povos”, Marx e Engels publicavam o Manifesto Comunista. As primeiras palavras do documento alertavam em tom profético, mas com olhos realistas, que “o espectro do comunismo” rondava a Europa. Certamente, o Império russo não fazia parte “dessa Europa”, mas as ideias se espalhavam – e ainda se espalham – rapidamente, sobretudo quando encontram campos férteis a recepcioná-las. Quase 70 anos depois, a revolução, “o assalto aos céus”, tornou-se realidade em um império retrógrado e autocrático, prometendo concretizar os sonhos da esquerda russa e mundial.
John Reed pode ser enquadrado como exemplo dessas expectativas advindas logo após a derrubada do governo provisório pelo soviete de São Petersburgo, que foram registradas em seu livro: “Faltava, agora, conquistar a imensa Rússia... e, depois, o mundo. A onda vermelha iria erguer-se da mesma forma no resto do mundo?”. O elemento fulcral, para o jornalista estadunidense, desejoso de uma “verdadeira democracia operária e camponesa”, eram os sovietes, “admirável exemplo do gênio administrativo” do povo russo.
Isaac Deutscher, no aniversário de 50 anos da Revolução, levantou questão que certamente resumia o espírito de inquietação que tomou conta da efeméride. Mais de uma década depois das denúncias dos “Crimes de Stalin” por Kruschev, parecia primordial responder a seguinte pergunta: A Revolução Russa realizou as esperanças que suscitou? Para Deutscher, tratava-se de uma “Revolução Inacabada”, composta por fracassos e êxitos, mas a sociedade soviética não poderia mais se conformar em continuar dependendo dos caprichos dos autocratas ou das decisões arbitrárias das oligarquias. Precisaria recuperar o sentido de ser senhora de si própria, obter o controle sobre seus governos e transformar o Estado, erguido acima da sociedade, em instrumento da vontade e dos interesses da nação.
Em análise cortante, apontou que a após a destruição do poder da propriedade, somente a burocracia, através do Estado, dominava a sociedade, cuja base assentava-se na supressão da liberdade do povo para criticar ou fazer oposição. Ao lutar contra isso, o povo soviético não estaria apenas ressuscitando velhas batalhas travadas pelo liberalismo burguês contra o absolutismo, mas dando prosseguimento à sua própria e grande luta de 1917 – daí o termo “Revolução Inacabada”.
Hobsbawm, em seu livro, Sobre a História, dentre outros aspectos, faz duas afirmações fundamentais para a análise do fenômeno revolucionário russo e suas consequências, traçando um inevitável balanço dos quase 80 anos decorridos após a Revolução de Outubro de 1917 até o desmoronamento da URSS. A primeira refere-se ao caráter popular da revolução e ao seu abafamento histórico: “A Revolução Russa foi feita pelas massas e durante os dez anos iniciais, seu destino foi determinado pelas massas russas – por aquilo que elas desejavam ou não apoiariam. O stalinismo colocou um fim nisso”.
O stalinismo foi mesmo o único responsável? Argumentos de outros autores parecem indicar que não. Ralph Miliband aponta que aspectos enfatizados pelo leninismo, como a rejeição a processos representativos e a ferocidade para com os adversários, criaram uma vanguarda arrogante que se transformou depois na oligarquia burocrática do stalinismo. No mesmo sentido, Daniel Reis lembra que Outubro resultou da luta pela liberdade, anos depois perdida na aventura de glória estatal e miséria humana para a construção de uma superpotência, cujo enfraquecimento e contradições revelaram a necessidade de mudanças. Mas essa sociedade, fragilizada e desarticulada por décadas de autoritarismo, ainda não foi capaz de indicar quais caminhos seguir. A “Revolução Proletária” de Lenin, Trotsky e Reed, e a “Revolução Inacabada” de Deutscher teriam realmente se transformado na “Revolução Perdida” de Daniel Arão Reis Filho?
A segunda afirmação de Hobsbawm assinala a dualidade de Outubro de 1917: “A Revolução Russa tem realmente duas histórias entrelaçadas: seu impacto sobre a Rússia e seu impacto sobre o mundo; não podemos confundir os dois”. Uma revolução paradigmática em termos temporais e históricos, mesmo isolada em um mundo hostil, e a despeito de as expectativas iniciais a considerarem como um prólogo da revolução mundial, que não aconteceu. Parte significativa da historiografia, como já ressaltado, considera que seu irrompimento e crepúsculo balizaram o século XX. Juntos, Outubro e a constituição da URSS modificaram a face do mundo e imprimiram uma marca no período que só terminou com o desaparecimento dos seus resultados como alternativa ao capitalismo.
Seguindo esses caminhos, a proposta da XXXIII Semana de História da UNESP/Assis é debater o processo revolucionário de 1917, enfocando principalmente o seu legado ao longo do século XX e a desintegração do socialismo soviético. Fica, portanto, o desafio lançado aos especialistas convidados (historiadores, cientistas sociais, economistas, antropólogos) que se integrarão à comunidade acadêmica docente e discente da UNESP – graduandos e pós-graduandos – para pensar os cem anos da Revolução Russa e difundir o conhecimento histórico produzido por pesquisas de alto nível.
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